O coronavírus tomou o globo. As estruturas mundiais colapsaram. As pseudoverdades que sustentavam o mundo corporativo podem não ter desmoronado de vez - mas é só uma questão de tempo para isso acontecer. As dinâmicas que ocorriam por suas redomas - e as lideranças que as conduziam - nunca mais serão as mesmas.
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Na tentativa de manter o paradigma atual, a liderança "mete os pés pelas mãos muitas vezes de forma inescrupulosa", alerta Joana Mao, autora e facilitadora do Clearing Purpose Framework, uma ferramenta que ajuda a clarear propósitos de líderes, equipes e organizações.
Foi em meio a uma crise que Joana concedeu esta entrevista exclusiva. A designer estratégica estava em São Paulo para ministrar dois workshops, mas teve seu vôo de volta à Dinamarca, onde mora há um ano e meio, cancelado devido à pandemia. Em meio à crise, facilitou discussões entre líderes da sociedade civil que discutiam como atender tempestivamente às novas demandas trazidas pela Covid-19. E a pressão trazida pelo coronavírus tornou ainda mais evidente a necessidade de uma nova postura na condução dos negócios e times.
"A colaboração é a tecnologia mais avançada: porque nos exige distinguir quais dos nossos valores ultrapassam a simples reciprocidade. É, basicamente, entender que estamos trabalhando juntos por algo maior. Essa de perguntar 'quem pode colaborar com o quê?' é muito bom para um churrasco, mas não funciona para construir um ambiente verdadeiramente colaborativo", alerta a especialista, que traz, ainda, um novo olhar sobre a gestão do tempo. Descubra na entrevista a seguir.
Referência em design estratégico, Joana Mao acredita que o momento atual exige que empresas e líderes esclareçam seus propósitos e construam relacionamentos mais genuínos e com verdadeiro aproveitamento de seus tempos.
Orange Business: Você é criadora de uma ferramenta de clareamento de propósito. Nos últimos tempos, "propósito" entrou para o bingo corporativo, no qual seu uso à exaustão faz, inclusive, com que se perca seu significado. Você pode explicar, então, sua visão sobre o conceito e como ele se aplica, de forma efetiva e pragmática, dentro do cenário corporativo?
Joana Mao: Se tem uma palavra vazia de prática nos dias atuais, é essa. A definição que dou para “propósito” é a mesma do dicionário: é a razão de existir na concepção de algo. Na prática, a gente confunde propósito com objetivo. Propósito é o motivo pelo qual algo foi feito na sua concepção. Objetivo é o que a adicionamos a essa concepção. Parece uma comparação estranha, mas podemos pensar dessa forma: todos temos nariz, e nosso nariz veio com o propósito claro. A gente não questiona isso: vai lá e usa. De jeitos diferentes para cada momento – na aula de ioga você usa de um jeito, na apneia de outro, na gastronomia também muda. Mas são todos usos de acordo com o propósito, você não deturpa a concepção do seu nariz. A mesma coisa acontece com as empresas. Todas as empresas foram concebidas por um motivo, mas ao longa da história, a maioria o perde de vista e foca nos objetivos. E aí entram vários valores em jogo, e na balança desses valores costuma pesar o bolso dos sócios, e não o propósito. Só que a empresa que perde o sentido deixa de existir. A empresa que não mantém uma utilidade social deixa de existir naturalmente. O problema é que se a equipe não se liga nessa concepção, ela fica trabalhando por objetivos, e isso esvazia o trabalho de sentido.
Orange Business: Como o contexto que vivemos atualmente - pandemia, isolamento social e incertezas sobre o futuro - impactou a sua rotina e a demanda de seus clientes pelos seus serviços?
Joana Mao: O impacto foi grande, e para explicar quanto, preciso contar um pouco da história. Em 2019, me mudei para Aarhus, na Dinamarca, para iniciar um curso de liderança empreendedora. A Clear Purpose Global nasceu lá, a partir do interesse que vi que os europeus têm pelo propósito. Na Finlândia, eu dei um workshop para profissionais e fiz contato com um professor de design estratégico que me convidou para levar isso para Dubai, outros projetos foram aparecendo. Percebi que eles olham mais para a questão ética dos negócios, com bastante compromisso, e o Clearing Purpose Framework começou a crescer nesse ambiente. Como eu sou estrangeira, não podia abrir um negócio por lá, então criei a plataforma no Brasil. Com a pandemia, os clientes que estavam agendados para o workshop se retraíram, e a própria plataforma foi impactada, porque teve um corte de equipe no parceiro desenvolvedor. Isso me afetou na parte técnica. Porém, afetou ainda mais na questão do propósito, pois ela tem tudo a ver com projetos de liderança de impacto, e eu não tinha ideia de que esse aspecto viria à tona tão fortemente quanto veio agora. Foi um tiro que acertou no alvo sem eu ter mirado (risos). Como é um projeto para levar mudanças e novas ideias, tem clientes que assumem que nem conhecem o mundo no qual vão trabalhar. Mas há os que estão começando agora e pensando no que vão fazer, e precisam clarear seu propósito antes de iniciar nesse novo mundo. Então, causou um aumento de demanda, porque todos começamos a ver o peso que certos valores têm se usados de forma prática.
Orange Business: Você acha que o cenário atual vai ressignificar o conceito de liderança?
Joana Mao: Acredito que a mudança que estamos vivendo é irreversível. São dois movimentos bem identificáveis. O primeiro paradigma é o da liderança que prioriza o crescimento econômico tradicional. Na tentativa de manter o paradigma, mete os pés pelas mãos muitas vezes de forma inescrupulosa. Ao mesmo tempo, estamos vivendo uma aceleração e uma velocidade de reorganização do trabalho que nunca vimos antes. Estamos vendo o velho se desfazer e aprendendo muito rápido a nos organizar para o novo. Muitas empresas estão conseguindo isso, comprovando que o home office não é tão inviável como se acreditava. Estamos provando que o ambiente digital permite contatos além de fronteiras culturais e reais, provando que podemos fazer melhor uso do tempo.
Orange Business: Quais as transformações que você já consegue observar?
Joana Mao: Não tenho evidências para dizer que os líderes mudarão totalmente, mas tudo aponta para duas grandes transformações. A primeira é que o padrão de valores está ficando muito claro, e estamos prezando de fato por uma uma liderança honesta, transparente, que valoriza a vida. A segunda é que os líderes que estão tomando iniciativas solidárias estão sendo tocados em um lugar humano, emocional, que talvez nunca tivesse sido solicitado. E é difícil negar esse lugar depois que ele foi acessado, pois ele é intrínseco em nós. Depois que o vivenciamos, não conseguimos mais ignorá-lo. E já podemos ver o tipo de reação que essa liderança solidária gera. Quando sairmos da pandemia, a maioria das empresas estará em um starting point bastante parecido, e acredito que quem se reorganizou em relação ao trabalho e adotou outra postura conseguirá manter isso, e terá uma vantagem nessa retomada.
Orange Business: São tempos difíceis para manter a serenidade individual. Na dimensão corporativa, está tão difícil quanto, ou o meio profissional oferece mais recursos e ferramentas para lidar com isso?
Joana Mao: Acho que a gente tem hoje mais perguntas para encontrar a serenidade. Os questionamentos ficaram mais sérios. O fato de você não ter que gastar seu foco com estresse de trânsito, locomoção, dá um espaço que te permite parar e se perguntar coisas como: o desconforto que estou sentindo é uma coisa natural? Que valores essa empresa está defendendo a ponto de estar roubando minha serenidade? As pessoas não estão felizes hoje, é óbvio, porque elas estão com medo: de morrer, de ficar sem emprego. Serenidade é um estado que a gente conquista com muito entendimento, e o momento agora é de fazer perguntas. Não adianta buscar uma falsa tranquilidade.
Orange Business: Você fala sobre redesenhar o tempo. Poderia explicar como fazê-lo?
Joana Mao: De forma genérica, podemos dizer que a estrutura de uma organização usa o tempo da seguinte forma: estabelece um planejamento, descobre uma direção e executa essa direção tendo em vista o objetivo. Todo o desenho do tempo de trabalho é voltado para o objetivo. É onde nascem os problemas dentro do processo da empresa: os conflitos, as competições, as dificuldades de entrosamento da equipe, etc. De modo geral, esse tipo de planejamento tende a não funcionar, porque nele lidamos com muitas variáveis. Fazer planejamento começou a ficar uma prática ineficiente. A gente redesenha o tempo para reorganizar em um processo que faça mais sentido, que seja coerente com o que vivemos hoje. Isso começa pela coesão da equipe. Quanto mais proximidade entre os integrantes, quanto mais coesão, menos perda de energia na navegação. A equipe que gasta mais tempo se conhecendo, entendendo como cada um funciona, é uma equipe que vai ter menos gasto energético. A equipe coesa entra em campo sabendo que não sabe, em estado de aprendizado. Nesse estado, a cabeça está mais ágil, consegue ter mais investimento na ação.
Orange Business: É um processo que depende intrinsecamente da colaboração entre as pessoas, portanto. E sabemos que isso não é fácil. Estamos preparados para agir dessa forma?
Joana Mao: A reciprocidade é uma coisa boa, mas não é algo que eleva a performance, porque ela acaba virando uma troca de favores, você paga uma ação com outra. Por isso eu digo que a colaboração é a tecnologia mais avançada: porque nos exige distinguir quais dos nossos valores que ultrapassam a simples reciprocidade. É, basicamente, entender que estamos trabalhando juntos por algo maior. Para conseguir isso, é preciso pensar nos mecanismos do que você está fazendo. Essa de perguntar “quem pode colaborar com o quê?” é muito bom para um churrasco, mas não funciona para construir um ambiente verdadeiramente colaborativo. É preciso entender a estrutura de forma otimizada, para então identificar o que pode eliminar os medos que as pessoas têm de se comunicar e de trocar ideias.
Orange Business: Falando em colaboração: o cenário atual, com grande número de pessoas em home office afastou ou aproximou as equipes?
Joana Mao: Essa é uma pergunta muito difícil de responder de forma absoluta. Acho inevitável que a pessoa que está em home office neste momento tenha ficado mais isolada, preocupada com a vida e com seu mundo. Porém, acho que as pessoas estão valorizando mais o contato. Sabe quando a gente puxa o elástico do estilingue e vai criando tensão? Estamos neste ponto: mais afastados, mas talvez estivéssemos muito afastados mesmo juntos, e agora que ficamos de frente com isso tudo, vamos dar outro valor ao contato e ao entrosamento quando voltarmos.
Você está imersa na realidade da Escandinávia. Você vê alguma diferença como as lideranças estão lidando com suas equipes neste momento no Brasil e na América Latina, em relação aos europeus? O que podemos aprender com eles e, por outro lado, o que podemos ensinar?
Joana Mao: Para ser bem realista e sem idealismos, o que eu vejo é que a Escandinávia já entendeu muito bem que os negócios têm que oferecer soluções concretas para as pessoas, ou têm que sair do caminho. Cada negócio precisa oferecer coisas factíveis, com critério, com benefício social claro e evidente. No mercado brasileiro, a gente faz recortes sem profundidade de conceitos e tecnologias, e quando tentamos aplicar, metemos os pés pelas mãos. Vejo [no Brasil] muito discurso de venda e pouco embasamento. Nossa capacidade de senso crítico, de visão, é prejudicada por uma cultura de mercado, onde os valores são o “meu amigo”, a venda, o esquema. Na Escandinávia a gente consegue debater com exemplos, provas, enfim, com concretude. Aqui, se você pede evidência, as pessoas se acuam, parece que não sabemos debater sem entrar em um conflito. A confiança do mercado é muito na retórica, mas se a gente aprofunda a conversa, será que encontra coisas sólidas? Valores precisam ser concretos.
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